Estava visitando a Bienal no sábado quando no meio da confusão e empolgação acabei presa lá durante a noite. O que não imaginava é que aquela noite não seria apenas eu e os livros. Algo impensável e que talvez você nem acredite aconteceu. Sabia que passaria a noite em meio as obras de artes mais bonitas do mundo, e resolvi tirar proveito disso, lendo tudo o que poderia e guardando o máximo de lembranças para os anos que viriam. Estava em meus devaneios lendo Um crime adormecido, de Agatha Christie, quando ouvi passos nas estantes próximas ao final do corredor. Como uma boa menina curiosa, levantei-me do chão, onde me encontrava toda torta lendo, para seguir o estranho barulho. Dei um salto para o corredor transversal, imaginando assustar alguém, mas lá estava eu e os livros, sozinhos. Recolhi o livro que estava no chão, nada de muito importante, era fino e sua capa totalmente branca. "Um livro sem capa?" Pensei comigo mesma, quando o abri não vi palavras impressas, o livro estava em branco. "É um caderno." Imaginei. Enrolei-o, de tão fino que era, e pus no bolso de trás da minha calça, voltando a Christie.
Li uma parte em voz alta para a minha própria distração: "No seu interior via-se o papel de parede original. O quarto, antigamente, era forrado com um papel de parede bem alegre, todo de flores, ramagens da papoulas vermelhas e centáureas azuis...". Pensei no quão bonito seria, reparando que as paredes estavam diferentes. As estantes estavam todas nos mesmos lugares, mas as paredes estavam cobertas de flores vermelhas e azuis. Devo ter prendido a respiração por alguns segundos, sendo que aqueles desenhos nunca estiveram lá, mas eram tão reais que ao toque eu podia sentir o papel de parede velho. Pensei em como eu podia ter feito aquilo, busquei outro livro e li: "No outono, após um tremendo e exaustivo esforço - pois a colheita se fizera ao mesmo tempo -, o moinho de vento estava pronto". Levantei a cabeça esperando algo acontecer, então, como em uma mágica bem feita, as paredes se juntaram e formaram o moinho de A revolução dos bichos, que era cercado por papoulas vermelhas e centáureas azuis. A grama invadia as estantes, pondo um horizonte infinto no que antes era uma sala florida.
Eu estava em meio a minha própria criação, a qual eu não fazia ideia que era possível de realizar. Estava empolgada e não pararia por aí. Tirei os sapatos e corri pela grama, percorrendo as estantes em busca de outros livros. No topo da estante estava As crônicas de Nárnia; retirei o livro e abri no Príncipe Cáspian: "Então, numa vibração de memória, voltou a ver, depois de tantos anos, as estrelas cintilantes de Nárnia". No decorrer de minha leitura, ficava cada vez mais difícil de ler. "O ar estava fresco, e no ar pairavam aromas deliciosos. Ali, pertinho, um rouxinol começou a cantar, parou, recomeçou. Um pouco adiante estava mais claro. O luar e as sombras penetravam-se de tal modo que se tornava difícil dizer onde estava uma coisa ou a outra. Nesse mesmo instante, o rouxinol, satisfeito com o ambiente, rompeu em pleno canto". Eu olhei para cima e me encantei. Estrelas e mais estrelas a brilhar, acompanhadas de uma lua cheia, mas que não as ofuscava. Havia árvores envolvendo todo o círculo, com o canto de um rouxinol ecoando de todos os galhos. O moinho estava no centro, envolto pelas flores e estantes, mostrando toda a sua beleza com o luar pairando sobre ele. Era tão lindo que eu escorreguei devagar sobre a estante, sentando na grama com os olhos presos nas constelações.
"Já é hora de acrescentar personagens!", pensei ligeiramente. "Desta vez encontrou um grande canteiro de flores, todo cercado de margaridas, com um salgueiro no meio. - Ó Lírio-tigre! - disse ela, dirigindo-se a uma flor que ondulava graciosamente ao vento. - Eu queria que você pudesse falar!". O salgueiro brotou do chão e cresceu, tornando-se uma árvore com ramos abundantes, estabeleceu-se atrás do moinho de vento. As flores surgiam em meio a grama, e o lírio-tigre apareceu bem ao lado do salgueiro.
- Olá lírio-tigre!
- Olá pequena. - Eu arregalei os olhos, ele podia falar! - Antes de alarmar e acordar todo o jardim, acenda as luzes, está muito escuro aqui, não enxergo suas pétalas!
- Eu não tenho pétalas.
- Não seja ingênua, todos tem pétalas.
- "Brilhava o sol sobre o mar, brilhava o mais que podia." - Li mais um trecho de Alice no país dos espelhos. A grama foi sendo tomada por água cristalina, parte dela, e a rosa estava no limite. O sol tomou conta do céu e o salgueiro fez uma bela sombra sobre mim e o lírio-tigre.
- Se não bastasse não ter pétalas, ainda me joga ao mar!
- Calada Rosa, você mesma vivia reclamando de como o calor era injusto contigo. Aproveite a água doce enquanto é tempo. - Virando-se para mim, continuou. - Obrigada pela sombra, este salgueiro não é lá muito generoso. - Cochichou a última parte, com medo do salgueiro, que era uma árvore majestosa, quase do tamanho do moinho de vento.
- O que está acontecendo?
- Quanto a que?
- Tudo! As mudanças!
- O aquecimento global?
- Por que vocês falam e tudo isso existe?
- Porque você quis. Agora, abra aquele livro ali, este mesmo. - Fez um movimento na direção do livro. - Na página setenta e dois, sexto parágrafo. Leia.
- "Realmente não se podia imaginar um adorno mais gracioso. O vestido era de escumilha rubescente, formando regaços onde brilhavam aljôfares de cristal; nos cabelos castanhos trazia uma grinalda de pequenos botões de rosa, borrifados de gotas de orvalho".
- Lindo, realmente lindo! Agora, procure em volta! Traga-a a mim!
- Quem?
- Amélia! A moça no vestido de seda vermelho do livro A pata da gazela!
Com um estridente grito, vi a tal Amélia sair correndo detrás do moinho de vento, segurando os regaços do vestido. Os sapatos ficavam a mostra, deixando ver dois pés bem pequenos, pareciam de boneca. Ela chegou até mim arfando.
- Onde estou?
- No meu jardim, querida.
- Quem disse isso?
- O lírio-tigre apaixonado aqui. - Apontei para ele.
- Olá doçura, onde volto para o meu baile?
- Tenho que te informar que não sairá daqui tão cedo, estamos todos presos aqui até isso acabar.
- O que vai acabar?
- Eu não sei, faz pouco tempo que estou conversando com a menina sem pétalas. E por falar nisso, suas pétalas vermelhas são muito bonitas!
- Agradecida. - Fez um sinal de obrigado e sentou na grama, ao meu lado. - Bem, ao menos expliquem-me o que está ocorrendo.
- Eu posso trazer personagens e lugares dos livros, foi assim que construí tudo isso.
- Que maravilha. Mas é possível trazer o meu Leopoldo?
- Não seja por isso. "Ao mesmo tempo que o nosso leão, entrava Leopoldo de Castro na modesta habitação que então ocupava na glória."
Leopoldo saiu de dentro do moinho de vento, que agora funcionava. Ele sorriu ao ver Amélia, que correu para os seus braços. Eles saíram e se sentaram perto do mar. Eu e o lírio-tigre podíamos ouvir a conversa deles perto do mar.
- Você está muito bonita.
- Obrigada. - Ela corou.
- Por que estamos aqui?
- É uma longa história.
Eu e o lírio-tigre estávamos felizes. Amélia e Leopoldo pareciam contentes, e o sorriso dele ia aumentando a cada frase da grande história que ela contava. Mas o lírio-tigre me lembrou de algo.
- Como isso tudo vai acabar?
- Eu não sei, acho que será um apagão e tudo voltará ao normal.
- Eu gostaria de ir contigo.
- Eu também, plantar-te-ia em um chão bem duro, para que não dormisse e continuasse a falar comigo.
- Esta é a minha ideia também. Faz um último favor para mim? - Fiz um movimento positivo com a cabeça. - Pega aquele caderno ali.
Fiz o que o lírio-tigre me pediu e tive uma grande surpresa, era o caderno em branco que eu encontrei no início da minha louca viagem.
- Abra e leia. - Eu abri o livro, cheio de gravuras e letras grandes, tudo em preto e branco. - Na página doze, terceiro parágrafo.
- "Fernanda conheceu o lírio-tigre, muito bonito e sincero. Era o tipo de flor para se pedir informações, mas flores não falam! Oras, o lírio-tigre falava, e muito bem por sinal. Era um conquistador nato com as palavras, e todos se calavam para ouvi-lo. Sua única perturbação era o salgueiro que se recusava a fazer sombra e a rosa mal-humorada, que estava mais para apaixonada por ele". Essa história é sobre nós!
- Claro, mesmo a rosa não estando apaixonada por mim, tudo isso é verdade. Agora vá à última página e leia. - Eu abri na última página, em branco. O lírio-tigre começou a falar e as palavras surgiam no caderno.
- "Então, Fernanda abriu o caderno na última página e leu o que o lírio-tigre havia 'escrito'. Tudo parecia muito perfeito, mas haveria de acabar algum dia, e porque não fazer disso algo poético? Fernanda retirou o lírio-tigre da terra dura, com muito esforço, e o guardou na mochila que estava jogada em uma das estantes, deu uma última olhada em Amélia e Leopoldo e fechou o caderno". E agora? - Perguntei ao lírio-tigre dentro da minha mochila.
- Agora você fecha os olhos bem forte e sonha. - Eu fechei os olhos.
- Sonhar com o que?
- Com o que você conseguir criar.
Quando abri meus olhos estava encostada em uma das estantes, na Bienal comum. Não havia rouxinol, salgueiro, moinho, Amélia nem Leopoldo. Era só eu e os livros. Mas eu vi o caderno jogado no chão, que agora não estava mais em branco. Na sua capa se lia: "O conto do lírio-tigre, criado por Fernanda". Que saudades eu tinha daquele lírio-tigre! Quando fui guardar o caderno na mochila, a surpresa que eu tive; encontrei-o lá dentro, como se tivesse sido posto há alguns segundos.
- Vamos para casa, lírio-tigre?
- Com todo prazer, criadora.
Eu sorri, e sabia que ele estava sorrindo. Plantei-o em uma terra bem dura, terras fofas são ruins, são como camas que te convidam a dormir. Não perderei nenhum conto deste conquistador nato das palavras.
Pauta para Blorkutando, 154ª edição. Tema: Trecho em itálico, Bienal.
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