quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Mil noites de lua cheia


                Fitando aqueles olhos negros, não sabia se era real. Aqueles olhos caídos me faziam cair de mim mesma, do meu ser e de toda aspiração que pudesse vir a ter. Ele me consumia como um chocolate amargo, cacau puro, doce sereno. Eu ia descendo por todas as suas vertentes, por todos os seus pensamentos, e lá estava sentado na cadeira do auditório, com aquela expressão de aconchego. Eu estava em pé, no outro lado, apenas nossos olhos se cruzavam, e eu caía no abismo daquele ser. Eu me deixava cair.
                Desviei o olhar. Como pode alguém ter o melhor e o pior de mim? Como pode alguém fazer-me parar de uma hora para outra? Assim como os girassóis seguem o sol, ele era o meu sol. Eu seguia os seus leves movimentos, as piscadas, os sorrisos, como ele passava a mão no cabelo. Eu tinha a necessidade de estar perto, ele me consumia como um chocolate amargo, consumia-me só pelo desejo de consumir, e ele não fazia ideia disso.
                E eu olhava, incendiava o lugar, e só eu sentia as labaredas subindo e tomando conta de todo ar que eu dispunha antes. A cada minuto eu ficava mais sufocada, e não me importava com isso. O fogo não tomava conta de mim, porque eu era o fogo, eu ansiava por queimar toda e qualquer possibilidade de fuga, eu ansiava pelos tetos desabados e pelos gritos de socorro. Eu anseio que a minha alma se encha com algo palpável, além deste amor que arde em mim a cada olhar que ele me lança.
                Por que tudo é tão vazio? É tão sem cor? Ele molda os quadros com a sua palheta infinita de cor, e eu assisto ao espetáculo. Ele move os ombros, abre a boca, mas não emite nenhum som. Bate palmas, pergunta às estrelas os motivos pelo qual o planeta me move. Ele move o meu planeta, todas as minhas estrelas brilham, receosas por uma pincelada dele. E eu me deixo ir, pois não há outro lugar que eu queira estar. Talvez um mundo mais colorido, com mais corujas e sentimentos palpáveis, mas não posso desgrudar os olhos dele. Eu simplesmente não consigo.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Trecho sorridente


“E se eu parasse para pensar
Em todas as vezes que chorei,
Perceberia que há motivos
Para vir a sorrir outra vez”.

Só um trecho da cartinha que escrevi para o meu amigo.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Folhas no cimento


                       
            Se olhar pela janela me lembrasse dele, fechava os olhos. Se o cheiro do mar me lembrasse dele, prendia respiração. Se doce de abóbora me lembrasse dele, não ousaria degustá-lo novamente. Tudo isso não me lembrava de James, mas sim as pálidas ruas de Nova Orleans, as músicas de Louis Armstrong que costumávamos escutar, o sorvete de caramelo que ele comprava para mim todas as sextas depois da aula de piano. Nunca mais consegui ir aquela sorveteria, é como se ele ainda estivesse sentado na cadeira azul, olhando todos aqueles sabores e decidindo em qual mergulhar profundamente. Ele me ofereceu um sorvete, e tudo aconteceu, era como mágica. E todas as vezes que espreitávamos a porta do quarto de seu pai, para escutar as melodias do jazz, embriagavam-me como o sorvete de caramelo. Repetíamos as músicas no piano, cantávamos em uma desafinação conjunta, e eu não me importava.
            Aprendi que os troncos das árvores têm histórias, e no final de semana íamos ao parque escutá-las. Abraçávamos uma árvore e ficávamos nos entreolhando, mas no final não eram as árvores que tinham histórias, mas nós que estávamos fazendo a nossa.
            Ás vezes nós ríamos sozinhos, sentados no meio fio olhando os carros. Pensávamos que éramos felizes assim, e que as pessoas, presas nos seus carros, não conseguiam aproveitar o de melhor fora deles. Perdiam muito tempo indo e vindo de lugares desnecessários, dirigiam até padarias que ficava na esquina de suas casas. Preguiça ou costume, perderam a habilidade de apreciar as pequenas coisas. Um dia, James veio correndo até mim com uma folha enorme na mão:
            “- Fernanda, Fernanda! Olhe esta folha!
              - E o que tem?
              - Não vê? Está cheia de cimento?
              - E o que uma folha com cimento tem de tão especial? – E ele me levou até a calçada que havia cimento ainda úmido, e eu vi exatamente a forma da folha desenhada no cimento.
              - As árvores podem morrer, as folhas podem ser levadas pelo vento, tudo isso é natureza, mas esta folha nunca será esquecida.”
            E eu olho aquela folha guardada na minha gaveta do criado mudo, todos os dias desde que ele se foi. Eu imagino o baque do carro, ele estendido no chão, sem mim. Ferido por uma pessoa desatenta aos detalhes, que perdeu habilidade de viver no nosso mundo, que dirigem para chegar a lugar nenhum. Ela chegou ao meu amigo, e ele não teve nem a chance de se despedir de mim, ou de lutar por mais um sorvete de caramelo, por uma nota de jazz. O baque foi tão forte que ele permaneceu imóvel.
            Eu não o vi no chão, não o vi no enterro, só nas minhas lembranças. Foi uma sexta-feira, ele me levou à sorveteria e comprou um sorvete de pistache, dizia que precisávamos ver o mundo mais verde, mais cor de pistache. Dizia que mudar é bom, mas que permanecer gostos é essencial. O sorvete caiu na minha camisa, ele riu. Eu o sujei, manchou a camisa dele. Prometemos ir à escola na segunda-feira com a camisa manchada, só para mostrar que o pistache tem o seu lugar no mundo, e nas nossas camisas. Nós nunca chegamos a ir à escola, tudo aconteceu no sábado.
            Dizem que a morte é apenas uma travessia do mundo, tal como os amigos que atravessam o mar e permanecem vivos uns nos outros. O James permanece vivo em mim na música, no sorvete, nas árvores, na calçada, nas folhas de outono, na minha camisa manchada. Eu permaneço machada de pistache, marcada na calçada, porque ele foi essencial na minha vida. Eu mudei de gostos, mudei de casa, mudei de opinião, mas mantive o que era bom. James era bom, e eu o mantive na minha memória. As árvores podem morrer, as folhas podem ser levadas pelo vento, tudo isso é natureza, mas o meu amigo nunca será esquecido.


Pauta para Bloínquês, 127ª edição conto/história, tema: negrito. 

P.S.: Imagem do site JB Studio Arte, do meu pai.

Avaliação Detalhada: Primeiramente, amei muito as alusões ao jazz. O jazz dá uma elegância imensurável no texto. E os detalhes, os pequenos momentos de felicidade que as personagens vivenciaram deram uma identidade ao texto. Não é uma história aleatória, é uma história com situações marcantes, memórias. A perda de um grande amor nos dói o coração e dilacera a alma, é tal sentimento que eu quis trazer na frase-tema, mas com uma visão otimista. E você cumpriu com propriedade a proposta. Um maravilhoso conto, sem dúvidas.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O peixe viu o feixe



            Eu já não sinto tanto medo do escuro quanto antes. Eu me acostumei com a  de claro e escuro, de dias bons e ruins. Eu já não penso mais assim. Alguns devem ter privilégios, e só a palavra já diz que um tem mais que o outro. Talvez seja sorte, destino, ou as escolhas. Talvez eu seja muito sortuda, ou que a chuva do azar cai sobre mim todos os dias. Estive analisando os prós e os contras de viver. Eu sinto, amor e dor. Eu vejo, coisas belas e atrocidades. Eu sonho, com o meu mundo e um imaginário. Eu respiro, a vida e a poluição. Eu falo, o bem e o mal. Eu choro, de alegria e de tristeza. Eu sou. Quem eu sou, quem eu quero ser.
            Talvez viver não seja tão bom, ou nem tão ruim. Não seria uma grande aventura morrer? Eu morro. Aos poucos, quando o meu nome for riscado. Fernanda. Suponho que nomes riscados tenham conhecido aquela tal escuridão de que falei. Nomes riscados já viram de tudo, ou pelo menos o que precisavam, ou não, ver. Viver vale a pena, o nanquim e o papel. Vale pelas memórias, pelo ser e pelos outros. Vale por cada beco escuro e cada aura mal iluminada. Que o escuro me consuma, que consuma a todos nós, que a tristeza invada o nosso ser, para quando o sol entrar, que a vida valha a pena. Se a claridade não tivesse o seu oposto, se nós não tivéssemos dois lados, como seríamos felizes? Como poderíamos sentir, ver, falar, viver? Como poderíamos criar tantos verbos para descrever a mesma sensação? A sensação de ser, de perceber que você é único, e que nada mudará isso. 
            Eu já não sinto tanto medo do escuro quanto antes, pois esta escuridão me fez ver melhor. Fez-me perder o medo de mostrar quem eu sou, tirou-me tudo, trancou-me com a solidão. E hoje eu não me sinto tão só, porque ela me deu a certeza da luz. O ditado que sempre há uma luz no fim do túnel? Ele pode ser o quão comprido quiser, e mesmo assim conseguiremos ver o feixe. Agradeço a todos que cavaram o meu túnel. Que grande aventura é viver.