sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Vozes pacificadoras


   Já era noite quando saí de casa e decidi ir ao cemitério. Ando escutando vozes, elas me dizem para seguir em frente e não olhar para trás. Eu não entendo a razão, mas o desconhecido vem me acompanhando desde muito tempo.
   Não é fácil para mim aceitar que os meus pais se foram, que meus amigos passaram a me ignorar, que sou uma bolsista no colégio e que ouço vozes ao entardecer. Os que eu chamava de amigos passam diante de mim e se mostram superiores, com suas roupas da moda e seu palavreado inteligente. As vozes não me abandonam, elas estão aqui comigo, orientando-me para o caminho certo, para a liberdade.
   Noite estranha foi a passada, eles ainda não tinham me visitado, então chorei. Foi um choro de gritos e soluços, foi um choro pior do que no enterro dos meus próprios pais. Percebi que eu dependia deles, do consolo que me davam, da esperança de um novo dia. Não quero depender de ninguém, mas agora eles fazem parte de mim.
   O entardecer está chegando, não vejo a hora de ouvi-los em meus pensamentos, sentir que falta muito pouco para libertar-me. Tenho dúvidas sobre de que eu estou fugindo, pois é isso que me parece. Esses anos eu tenho me confessado a seres estranhos que eu nem sei o que são, mas eu confio neles, cegamente.
   Eles chegaram. Rondam o meu quarto sem pedirem licença, mas são como amigos de infância. Eles me dizem para não ter medo, que os próximos dias serão o meu juízo final, e que serei julgada por um ser muito maior que eu. Não acredito em Deus, e eles não querem que eu acredite, eles só me fazem refletir sobre o que realmente eu quero e preciso neste momento.
   Ouço um grito, longe e desesperador. Meu coração pulsa, sinto-me aflita e nem sei quem está em apuros. Vejo um menino pela janela, não muito novo, na idade em que eu largava as bonecas. Ele corre entre as árvores e grita pelos pais, e como um raio de luz ele desaparece em frente aos meus olhos. Não vejo mais as pegadas no quintal, não ouço mais os gritos e não sinto a presença das vozes. Adormeço.
   O sol cega a minha visão, e a janela está meio aberta. A brisa do outono enche os meus ouvidos e eu posso ouvir o canto dos pássaros, e hoje já o admiro. Um sorriso surge em meu rosto, questiono-me sobre a noite passada e não me lembro de nada, absolutamente nada. As escadas rangem com os meus passos pesados, e sem pensar, abro a porta da frente e me jogo na grama a rolar. Estou feliz, completa.
   Não estou interessada em preocupar-me com o colégio, meu bom dia está mais espontâneo a cada pessoa que cumprimento na rua. O som do sinal preenche os meus sentidos, e como de clichê nunca ocorrido em minha vida antes, Kaio derruba todos os meus livros no chão. Ouço vagamente a voz que me diz:
   - Seja feliz, Julie.
   E sem mais delongas, apresento-me ao gentil garoto que me ajudava a recolher os livros espalhados pelo chão. E indo em direção à sala, ele me convida para um almoço juntos, e em meus profundos pensamentos eu estou dizendo a ‘eles’: “obrigada”!
Pauta para In verbis, 14ª edição. Tema: Frase em itálico.

1 opiniões:

Irene Moreira disse...

Fernanda
Impressionante suas histórias. Envolventes de tal forma que não conseguimos parar de ler até chegar ao fim.
Belíssima participação.
Boa sorte!

Beijos

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