segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Folhas no cimento


                       
            Se olhar pela janela me lembrasse dele, fechava os olhos. Se o cheiro do mar me lembrasse dele, prendia respiração. Se doce de abóbora me lembrasse dele, não ousaria degustá-lo novamente. Tudo isso não me lembrava de James, mas sim as pálidas ruas de Nova Orleans, as músicas de Louis Armstrong que costumávamos escutar, o sorvete de caramelo que ele comprava para mim todas as sextas depois da aula de piano. Nunca mais consegui ir aquela sorveteria, é como se ele ainda estivesse sentado na cadeira azul, olhando todos aqueles sabores e decidindo em qual mergulhar profundamente. Ele me ofereceu um sorvete, e tudo aconteceu, era como mágica. E todas as vezes que espreitávamos a porta do quarto de seu pai, para escutar as melodias do jazz, embriagavam-me como o sorvete de caramelo. Repetíamos as músicas no piano, cantávamos em uma desafinação conjunta, e eu não me importava.
            Aprendi que os troncos das árvores têm histórias, e no final de semana íamos ao parque escutá-las. Abraçávamos uma árvore e ficávamos nos entreolhando, mas no final não eram as árvores que tinham histórias, mas nós que estávamos fazendo a nossa.
            Ás vezes nós ríamos sozinhos, sentados no meio fio olhando os carros. Pensávamos que éramos felizes assim, e que as pessoas, presas nos seus carros, não conseguiam aproveitar o de melhor fora deles. Perdiam muito tempo indo e vindo de lugares desnecessários, dirigiam até padarias que ficava na esquina de suas casas. Preguiça ou costume, perderam a habilidade de apreciar as pequenas coisas. Um dia, James veio correndo até mim com uma folha enorme na mão:
            “- Fernanda, Fernanda! Olhe esta folha!
              - E o que tem?
              - Não vê? Está cheia de cimento?
              - E o que uma folha com cimento tem de tão especial? – E ele me levou até a calçada que havia cimento ainda úmido, e eu vi exatamente a forma da folha desenhada no cimento.
              - As árvores podem morrer, as folhas podem ser levadas pelo vento, tudo isso é natureza, mas esta folha nunca será esquecida.”
            E eu olho aquela folha guardada na minha gaveta do criado mudo, todos os dias desde que ele se foi. Eu imagino o baque do carro, ele estendido no chão, sem mim. Ferido por uma pessoa desatenta aos detalhes, que perdeu habilidade de viver no nosso mundo, que dirigem para chegar a lugar nenhum. Ela chegou ao meu amigo, e ele não teve nem a chance de se despedir de mim, ou de lutar por mais um sorvete de caramelo, por uma nota de jazz. O baque foi tão forte que ele permaneceu imóvel.
            Eu não o vi no chão, não o vi no enterro, só nas minhas lembranças. Foi uma sexta-feira, ele me levou à sorveteria e comprou um sorvete de pistache, dizia que precisávamos ver o mundo mais verde, mais cor de pistache. Dizia que mudar é bom, mas que permanecer gostos é essencial. O sorvete caiu na minha camisa, ele riu. Eu o sujei, manchou a camisa dele. Prometemos ir à escola na segunda-feira com a camisa manchada, só para mostrar que o pistache tem o seu lugar no mundo, e nas nossas camisas. Nós nunca chegamos a ir à escola, tudo aconteceu no sábado.
            Dizem que a morte é apenas uma travessia do mundo, tal como os amigos que atravessam o mar e permanecem vivos uns nos outros. O James permanece vivo em mim na música, no sorvete, nas árvores, na calçada, nas folhas de outono, na minha camisa manchada. Eu permaneço machada de pistache, marcada na calçada, porque ele foi essencial na minha vida. Eu mudei de gostos, mudei de casa, mudei de opinião, mas mantive o que era bom. James era bom, e eu o mantive na minha memória. As árvores podem morrer, as folhas podem ser levadas pelo vento, tudo isso é natureza, mas o meu amigo nunca será esquecido.


Pauta para Bloínquês, 127ª edição conto/história, tema: negrito. 

P.S.: Imagem do site JB Studio Arte, do meu pai.

Avaliação Detalhada: Primeiramente, amei muito as alusões ao jazz. O jazz dá uma elegância imensurável no texto. E os detalhes, os pequenos momentos de felicidade que as personagens vivenciaram deram uma identidade ao texto. Não é uma história aleatória, é uma história com situações marcantes, memórias. A perda de um grande amor nos dói o coração e dilacera a alma, é tal sentimento que eu quis trazer na frase-tema, mas com uma visão otimista. E você cumpriu com propriedade a proposta. Um maravilhoso conto, sem dúvidas.

1 opiniões:

Ana Carolina disse...

Nossa, Fernanda; que texto incrível!
Não li os outros textos para a pauta do Bloínques, mas acredito que o seu merece o 1º lugar.

Há pessoas que simplesmente não vêem a beleza da vida. Sim, tem gente que vai a padaria, que é a cinco minutos de casa, de carro. E também tem os outros que simplesmente sentem a beleza em algo simplório, como uma folha de árvore.

Realeza Contemporânea

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