No mesmo banco de sempre eu estava sentada, com meus pensamentos perdidos no livro a minha frente. Ele surgiu do nada, um vulto qualquer ao meu lado com um grande sobretudo preto. Tinha as melenas soltas pelo rosto, escuras como breu e molhadas com o suor. Seus olhos azuis saltavam, mas sempre voltavam ao chão, tentando passar despercebido. Então, uma pena caiu, leve, destacou-se no chão negro, e eu corri para pegá-la. Quando o gritei ele já havia desaparecido.
A
pena, grudada com fita adesiva, decorava a minha parede branca, quase não se
percebia a presença dela. Todos os dias eu a encarava, tentava decifrar aquele
homem pelo pouco que recordava. Um dia a pena não estava mais lá. A parede
branca como cal, e a minha cama coberta com penas. Olhei atenta àquele paraíso,
e me joguei sem medo na cama, o que fez as penas se espalharem por todos os
lados.
Ele
estava na janela, parado, encarando-me. O mesmo sobretudo e os mesmos cabelos
molhados. O mesmo jeito tímido de antes. Caminhei até o peitoril, receosa da
minha escolha.
-
O que é isso? – Segurava uma das penas.
-
Isso se chama pena.
-
Quem é você?
-
O homem das penas, apenas. – Entregou-me mais uma pena, que era maior do que as
outras, e sumiu enquanto eu a admirava.
Gritei
da janela, olhei, procurei, mas ele havia ido. As escadas vazias, as janelas
trancadas, e eu confusa, mais uma vez. E naquela e em muitas outras noites, as
penas me fizeram companhia.
Ele
aparecia todas as tardes, cada dia com uma pena, e eu as colava na parede, uma
por uma.
-
Não está muito cheio?
-
A parede? Está leve.
-
Não havia me dado conta que já te dei tantas penas assim.
-
Onde você consegue tantas?
-
Eu tenho um grande estoque. – Ele ficou em silêncio, sorriu. Aquele sorriso
grande, que me encantou de primeira. – Eu quero te mostrar uma coisa.
Estendeu
a mão para mim, e eu a agarrei, desapegando-me de todas as dúvidas que eu tinha
sobre ele.
-
Você nunca me disse o seu nome.
-
Miguel.
E
nós subimos uma pequena colina. As nuvens estavam baixas, nós sentados na grama
verde e ele com a mão na minha.
-
Era uma vez uma montanha muito alta, era imponente e seu ego o mais alto possível.
Eu nasci nesta montanha. Um dia veio uma chuva incomum, e a destruiu. Diminuiu-a
um pequeno morro, uma simples colina. Eu nasci nesta colina. E todos os dias eu
volto nela, para admirar a vista que não foi tirada de mim. E aqui está vista,
tudo o que seus olhos alcançam sempre foi meu, sempre foi dos meus olhos.
E
eu olhei, avistei até onde os meus olhos alcançavam, entendi a pureza daquele
local. E havia penas espalhadas pela grama, faziam uma trilha como neve em um
dia frio.
-
Eu não queria ser assim, ser diferente dos outros. Você merece as minhas penas,
eu não. Por isso eu me desfaço de cada uma, a cada dia, mesmo que seja tão
doloroso.
-
E você já se desfez de todas?
-
Essa colina sempre será uma montanha, sempre terá a matéria de uma. O lugar
onde eu nasci sempre será aqui, não importa se a vista mude. As penas sempre
farão parte de mim, mesmo que eu tente arrancá-las.
-
O que você teme? – Perguntei enquanto me aproximava para abraçá-lo.
-
De você não me amar. – Ele se afastou.
Caminhou
de costas até a queda, jogou-se. O tempo parou, eu parei: de respirar, de viver
por segundos inalcançáveis. Corri até a queda.
Ele
apareceu sem o sobretudo, com grandes asas brancas como o leite. Sumia por
entre as nuvens, passeava por entre as árvores, amostrava para mim o que mais
odiava nele. E em um súbito momento de loucura me joguei. O vento batendo em
meu rosto, os olhos fechados, as sensações nos seus ápices. Suas asas roçavam
em mim, seus olhos me encaravam, seu sorriso não existia.
-
Eu te amo.
E
o sorriso manifestou-se.
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