sexta-feira, 9 de março de 2012

Paraíso de penas


   No mesmo banco de sempre eu estava sentada, com meus pensamentos perdidos no livro a minha frente. Ele surgiu do nada, um vulto qualquer ao meu lado com um grande sobretudo preto. Tinha as melenas soltas pelo rosto, escuras como breu e molhadas com o suor. Seus olhos azuis saltavam, mas sempre voltavam ao chão, tentando passar despercebido. Então, uma pena caiu, leve, destacou-se no chão negro, e eu corri para pegá-la. Quando o gritei ele já havia desaparecido.
     A pena, grudada com fita adesiva, decorava a minha parede branca, quase não se percebia a presença dela. Todos os dias eu a encarava, tentava decifrar aquele homem pelo pouco que recordava. Um dia a pena não estava mais lá. A parede branca como cal, e a minha cama coberta com penas. Olhei atenta àquele paraíso, e me joguei sem medo na cama, o que fez as penas se espalharem por todos os lados.
     Ele estava na janela, parado, encarando-me. O mesmo sobretudo e os mesmos cabelos molhados. O mesmo jeito tímido de antes. Caminhei até o peitoril, receosa da minha escolha.
     - O que é isso? – Segurava uma das penas.
     - Isso se chama pena.
     - Quem é você?
     - O homem das penas, apenas. – Entregou-me mais uma pena, que era maior do que as outras, e sumiu enquanto eu a admirava.
     Gritei da janela, olhei, procurei, mas ele havia ido. As escadas vazias, as janelas trancadas, e eu confusa, mais uma vez. E naquela e em muitas outras noites, as penas me fizeram companhia.
     Ele aparecia todas as tardes, cada dia com uma pena, e eu as colava na parede, uma por uma.
     - Não está muito cheio?
     - A parede? Está leve.
     - Não havia me dado conta que já te dei tantas penas assim.
     - Onde você consegue tantas?
     - Eu tenho um grande estoque. – Ele ficou em silêncio, sorriu. Aquele sorriso grande, que me encantou de primeira. – Eu quero te mostrar uma coisa.
     Estendeu a mão para mim, e eu a agarrei, desapegando-me de todas as dúvidas que eu tinha sobre ele.
     - Você nunca me disse o seu nome.
     - Miguel.
     E nós subimos uma pequena colina. As nuvens estavam baixas, nós sentados na grama verde e ele com a mão na minha.
     - Era uma vez uma montanha muito alta, era imponente e seu ego o mais alto possível. Eu nasci nesta montanha. Um dia veio uma chuva incomum, e a destruiu. Diminuiu-a um pequeno morro, uma simples colina. Eu nasci nesta colina. E todos os dias eu volto nela, para admirar a vista que não foi tirada de mim. E aqui está vista, tudo o que seus olhos alcançam sempre foi meu, sempre foi dos meus olhos.
     E eu olhei, avistei até onde os meus olhos alcançavam, entendi a pureza daquele local. E havia penas espalhadas pela grama, faziam uma trilha como neve em um dia frio.
     - Eu não queria ser assim, ser diferente dos outros. Você merece as minhas penas, eu não. Por isso eu me desfaço de cada uma, a cada dia, mesmo que seja tão doloroso.
     - E você já se desfez de todas?
     - Essa colina sempre será uma montanha, sempre terá a matéria de uma. O lugar onde eu nasci sempre será aqui, não importa se a vista mude. As penas sempre farão parte de mim, mesmo que eu tente arrancá-las.
     - O que você teme? – Perguntei enquanto me aproximava para abraçá-lo.
     - De você não me amar. – Ele se afastou.
     Caminhou de costas até a queda, jogou-se. O tempo parou, eu parei: de respirar, de viver por segundos inalcançáveis. Corri até a queda.
     Ele apareceu sem o sobretudo, com grandes asas brancas como o leite. Sumia por entre as nuvens, passeava por entre as árvores, amostrava para mim o que mais odiava nele. E em um súbito momento de loucura me joguei. O vento batendo em meu rosto, os olhos fechados, as sensações nos seus ápices. Suas asas roçavam em mim, seus olhos me encaravam, seu sorriso não existia.
     - Eu te amo.
     E o sorriso manifestou-se.

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