sábado, 13 de outubro de 2012

Portais de giz


A primeira vez que vim aqui, do pouco que me lembro, foi reconfortante. Eu era gélida e pálida, sem vida e poucas cores no meu rosto e na palheta de cores da minha vida. Eu bati na porta, o jardim bem cuidado chamou-me atenção com suas grandes rosas azuis, eu nunca tinha visto rosas azuis criadas naturalmente. Ele abriu a porta, seus imensos olhos azuis, da mesma tonalidade das rosas. Não sorri, não me mexi, não sei por que havia batido na porta, apenas senti que deveria.
        Ele sorriu e estendeu a mão, já era idosa assim como o seu rosto, o bigode branco e espesso escondia algo nele, assim como o seu cabelo penteado com o maior cuidado para o lado esquerdo, e os cachos no final. Subimos a escada e ele abriu uma porta e me deu um giz, sorriu mais uma vez e a fechou. Eu apaguei.
        Acordei no dia seguinte no meu quarto, o velho quarto pálido de todos os anos, mas lá estava o giz do dia anterior, sobre a escrivaninha. Simplesmente pus na mochila e me fui para a escola, já era tarde naquela manhã de inverno.
        Enquanto caminhava avistei novamente a casa, parei, mirei o relógio e andei em direção à casa. Bati na porta e recuei. Ninguém apareceu, repeti a ação umas duas ou três vezes, até me cansar e perceber a quão atrasada eu estava. A ação repetiu-se mais quatro, cinco vezes naquela semana, sem resposta.
        Desenhei um círculo no chão do quarto, afastado da cama e da escrivaninha, conseguia deitar sobre ele, abrir os braços e até fazer um anjo de neve de madeira. Um anjo tão branco, uma madeira tão escura, bela comparação do que eu era. O rosto não escondia a quão branca eu era e os olhos e cabelos escuros, cores de pinheiro se sobressaíam, era como a neve sobre a madeira. Desenhei alguns flocos no círculo, eram irregulares, parecidos com o que eu havia visto nestes anos de neve. Eles pareceram frios, molhados, reais, e quando os toquei percebi que se desfaziam em pequenas poças de água. A madeira estava molhada e talvez até um pouco mais funda, as poças foram caindo e caindo, como se passassem para o primeiro andar, mas eu não via buracos. Eram aprofundamentos na madeira, com as bordas escuras, cheias de água. Toquei uma delas e eram tão cristalinas. Aumentaram e aumentaram até o círculo se transformar em um pequeno lago no meu quarto. O fundo era escuro e eu não conseguia ver a pureza da água, mas o simples toque já revelava o quanto ele era gélida e perfeita. Olhei para a porta, e para a janela, vi a neve retendo-se no peitoril. Olhei para o lago e imergir, sem pensar no que estava do outro lado, se existisse.
        Como se fosse negro, como se fosse bruma, como se fosse a morte. Sensações que me levavam a querer sumir do mundo, dos pensamentos. Estava naquela pequena imensidão e sentia que nunca acabaria. Emergi, estava cega, via um clarão e nada mais. Tudo parecia ter desaparecido. Abria os braços e não encontrava a borda, não havia fundo, eu estava cansada. Nadei para qualquer lugar, para qualquer direção. Não me dei com a borda, apenas mais água, mais líquida entre as minhas mãos que faziam movimentos iguais. Os braços iam se cansando, minha alma caía, e eu me deixava levar pelo fluxo, até a hora que parei de nadar.
        Despertei na grama, o cheiro de terra molhada, a pele espetada por algo tão fresco como orvalhos na grama verde. Ouvia o barulho da água, a mesma água onde eu me encontrava antes. Folhas umedecidas cobriam os meus olhos, e eu sentia algo macio, suave. Preenchia os meus olhos, aliviava a minha dor.
        - Melhor?
        Levantei-me rápido e tirei as folhas do meu rosto, abri os olhos. Apenas um clarão. Abri os braços e tentei apalpar alguma pessoa, encontrar quem havia feito a pergunta.
        - Não, não. Você tirou curativo. Errado, muito errado. Terei que começar novamente. Por que vocês nunca ficam quietos?
        - Quem é você?
        - Eu me chamo Luter, agora se deite novamente para eu começar todo o trabalho, sua desastrada.
        - Por que eu não consigo enxergar? Onde está você? – Eu perguntava, balançando as minhas mãos histericamente.
        - Se não parar com esse comportamento estapafúrdio a sua pessoa voltará para a água de onde te tirei.
        - Você me salvou? E o que eram aquelas folhas no meu rosto?
        - Folhas de aveleira com pétalas de edelwaiss amassadas. Muito bom para fazer a visão voltar, mas demora um tempo enorme para isso. – Ele enfatizou o enorme tempo. – Buscar mais folhas, sim, buscarei mais. Não saia deste lugar.
        E eu pensava que lugar era aquele. Esperei, deitei na grama e fechei os olhos, não pude dormir, eram tantas coisas passando pela minha cabeça, onde eu estava naquele momento. Dormindo, em outro mundo ou do outro lado do meu?
        Luter voltou com as folhas e fez outro curativo, amarrou parte de uma folha de bananeira que circundava minha cabeça, fazendo que o curativo se mantivesse preso. Ele bocejou algumas vezes, e só depois vim a perceber que ele repetia demasiadamente este ato.
        - Por que está sempre bocejando?
        - Eu não sou muito do dia, gosto mais da noite, momentos de crepúsculo onde posso comer sossegado e pensar sobre a vida. Só que é meu dever cuidar do lago, o mesmo lago que te salvei e que está bem na sua frente, lamento por você não poder admirá-lo. Com isso perco muitos dias de sono, e acabo por não dormir o suficiente.
        - Você poderia passar sua tarefa para outra pessoa.
        - Jamais! – Ele gritou. – Cuido deste lago desde que nasci! Meu bisavô cuidou, meu avô cuidou, minha mãe cuidou e comigo não seria diferente, oras pois.
        - Sim, eu entendo, é um dever hereditário, mas você não perde mais dias de vida com isso?
        - Entenda uma coisa, pequena desastrada, o que perco acabo ganhando de outro modo, ou em outro momento. No dia que não me ouvir bocejar, pode ter a certeza de que este lugar foi engolido pelo lago e que nada, jamais, voltará a ser a mesma coisa.
        - Bem lembrado, onde eu estou?
        - Perdeu o caminho de casa? Posso te emprestar uma bússola. Não há de me fazer muita falta.
        - Não, eu lembro que estava no meu quarto e mergulhei em uma poça de água no chão, acordei aqui.
        - Isso é comum, não se preocupe. Muitas pessoas aparecem por aqui vindas de quartos, praças, teatros. Gizes foram espalhados pelo mundo afora, onde você conseguiu o seu?
        - Foi um homem idoso, que mora perto da minha casa.
        - Oh sim, deixe-me explicar: poucos gizes existem, eles são raros e como sabe, eles se desgastam com o uso. Eles criam portas para este lugar, mas muitas pessoas não sabem como usá-los. Já vi de tudo por aqui, crianças que desenharam na parede, alunos com uma professora que explicou a matéria no quadro negro, meninas que desenharam no muro o nome de seus amados com um grande coração. Se a ponta de uma linha se junta à outra ponta dela mesma, uma porta de abre. Se for grande o suficiente você poderá entrar e ver o que tem do outro lado. Só que poucos conseguem ver, poucos conseguem esperar o tempo necessário para o curativo fazer efeito. E eles se vão, tiram os curativos, gritam, fazem perguntas demais. E a mais frequente é como achar o jeito de voltar. Como não tenho permissão para fincar alguém no chão, digo a saída e os deixo ir.
        - E só existe o lago como entrada?
        - Não, há mais entradas, na floresta, nas montanhas, nas árvores. Não em todas, claro, mas cada uma tem o seu guardião.
        Ele continuou contando-me coisas maravilhosas, que ás vezes me espantava, e outras me faziam rir. Mesmo com a venda nos olhos eu podia ver que aquele lugar era bom, sentia isso em cada gota do meu ser. Eu estava realmente longe de casa, e feliz por isso, tudo era muito sem cor por lá.
        Não me lembro de como voltei, ou o que realmente passei lá. Apenas acordei no chão de madeira do meu quarto, o círculo ainda desenhado, minha memória afetada. Eu acordei diferente, sentia-me mais viva e mais disposta a encarar o mundo. Não era mais tão gélida, meu coração estava aquecido. Eu estava feliz por dentro, mesmo não sabendo as razões.
Lembrava-me de Luter e de nossa primeira conversa, mas todo o resto se apagou da minha memória. Conto aqui o que aconteceu de início para que vocês saibam da minha experiência, porque tenho esperança que alguém tenha passado pela mesma coisa, ou por algo parecido. Tenho esperança que alguém tenho ido para esta outra terra, tenha falado com Luter ou com qualquer outra pessoa.
        Peço, do mais fundo do lago que me levou até lá, digam-me que não enlouqueci e que há um jeito de voltar. A casa que a princípio bati na porta não está mais lá, mas sim um campo deserto. Não tenho mais daquele giz, e sei que as possibilidades de encontrá-lo são remotas.
        Minha única esperança é que alguém se lembre, porque nem eu tenho mais certeza se Luter era uma pessoa ou uma lontra.

1 opiniões:

Ana Carolina disse...

Fernanda, seus textos, poemas e poesias sempre são ótimos. Quase não comento, mas sempre entro no seu blog.
Sua forma de escrever é incrível e sempre que leio seus escritos, sinto saudade de quando eu escrevia poemas e poesias. Época distante, que eu tinha inspiração. Hoje é quase impossível escrever algo do tipo. Talvez eu esteja precisando encontrar um giz e ir para um tal lago para ver se isso muda de alguma forma.
Todas suas palavras tem um quê de poético e isso torna todos os textos lindos. E é viciante, pois quando leio um, passo para o seguinte e assim continuo. Às vezes lendo o mesmo mais de uma vez...

Realeza Contemporânea

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